sábado, 7 de setembro de 2013

Entrevista com o premiado barista de Curitiba, para a Itapema FM, de Santa Catarina.


por Marina Martini Lopes  |  marina.lopes@itapemafm.com.br

Otavio Linhares foi o convidado da primeira edição do Barista Itapema, o novo evento da rádio, criado especialmente para os apreciadores do café. Uma pesquisa rápida sobre Otavio o apresenta como campeão do Campeonato Brasileiro de Baristas, bi-campeão do Campeonato Sul-Brasileiro, representante do Brasil no Campeonato Mundial. Ele está no ramo desde 2002 e, com seus cursos, workshops, e palestras, já formou centenas de baristas em todo o país. Fala ainda sobre o Rause Café + Vinho, de Curitiba, onde trabalha. Mas conversar com ele nos mostra que Otavio é muito mais que um especialista em cafés: ele é um apaixonado pelo assunto - sobre o qual fala com assumido idealismo; e também por teatro, música, literatura, filosofia, arte... O artista falou sobre sua carreira, a indústria do café no Brasil, e seu discurso em relação a tudo isso.

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Marina: Como foi que você começou a trabalhar com café?

Otavio: Eu trabalhava em uma escola particular, dando aulas de história para o ensino fundamental. Eu tenho formação em três faculdades: filosofia, teatro e história. Eu acabei sendo demitido, por uma longa história... E me frustrei um pouco com a ideia de dar aulas, principalmente em uma escola assim, uma instituição particular. Um dia eu estava conversando com uma amiga e ela me perguntou o que eu ia fazer agora, e eu falei: "Quer saber? Eu quero trabalhar em bar. Quero trabalhar com gente que beba. Cansei dessa gente hipócrita." E ela me disse: "Olha, não é bem um boteco, mas eu tenho uma vaga em um café, serve?" E eu fui trabalhar em um café. Eu não sou um cara de escritório, sabe, eu gosto de gente, então gostava desse trabalho de ficar no balcão, conversar com as pessoas. E aos poucos eu fui me interessando mais pelo café em si, pelo processo, pela coisa toda.

Marina: O que você viu de tão interessante no café, para passar a trabalhar definitivamente com isso?

Otavio: Eu fui estudar. Conheci o processo todo, da fazenda à xícara. Descobri os cafés especiais, e fui achando tudo muito fascinante, apaixonante mesmo. Faz uns dez anos que eu estudo o café, e eu não parei de estudar ainda, nem vou parar. (pausa) Eu sou muito crítico. Sempre me considerei um crítico da cultura e do jeito como as coisas são feitas no nosso país. Tudo é muito vertical, muito tradicionalista. E isso se reflete no café também. O café que a gente toma é ruim. E é ruim por causa desse pensamento da indústria. A indústria do café é uma das que menos mudou desde o tempo dos escravos. Saber disso me fez querer fazer as coisas de um jeito diferente. Em 2007 eu larguei o balcão e fui trabalhar com a parte mais técnica, de consultoria. Ao mesmo tempo eu também estava trabalhando como ator. Tinha duas companhias de teatro, e fazia bastante publicidade. Eu estava participando de campeonatos, também. Fui campeão do Campeonato Brasileiro de Baristas, e aí fui representar o Brasil no Campeonato Mundial e me fodi... (risos) Mas hoje em dia eu parei e voltei só para a consultoria. Não tenho mais vontade de competir, não.

Marina: Por quê?

Otavio: Olha... (pausa) Por onde eu passei, eu sempre arranjei confusão. (risos) Tenho um certo problema com as regrinhas, com a politicagem, a puxação de saco. Se eu achava que as notas de um ou outro barista estavam sendo manipuladas, eu denunciava, ia pro microfone mesmo. Em 2009, por exemplo, era para eu ter sido campeão, mas eu terminei como vice por... Problemas políticos, digamos assim. E depois descobri que em outras situações, por causa da mesma politicagem, eu já tinha sido favorecido. Aí eu cansei. Fui me afastando do pessoal que organiza os eventos, que participa, e parei de vez.

Marina: Como aconteceu de você se envolver com a Rause Café + Vinho?

Otavio: Em 2011 um amigo meu se divorciou da esposa, que era a sócia dele em um restaurante, e me convidou para abrir um café. Ele encontrou uma outra sócia, e eu fiquei de consultor dos dois. Fiz a consultoria de graça, mas falei: "Olha, se quiser trabalhar comigo, vai ser desse e desse jeito. Eu vou falar como tem que ser, e vocês vão fazer." Tipo diva, sabe? Quero vinte toalhas brancas no meu camarim, garrafas de vinho... (risos) Mas eles concordaram. Eu digo que lá a gente é meio que uma ONG: todo mundo faz de tudo, o balcão é aberto, não tem garçom... Tem meia dúzia de mesas, o lugar é do tamanho dessa sala aqui. (indicando a sala onde estávamos) A ideia é que o café seja acolhedor, mesmo - por isso a brincadeira com a sonoridade da palavra "rause", que lembra "house", "casa". Mas "rause" vem do norueguês. Significa "generosos".

Marina: E hoje em dia você só trabalha com o café, mesmo? 

Otavio: Eu parei com o teatro, pelo menos por enquanto. Mas agora estou envolvido com dois projetos de literatura: uma revista de literatura voltada para escritores e ilustradores curitibanos, e outro projeto que eu tenho com um amigo meu, que a gente chamou de Encrenca. A gente gosta de escrever umas coisas meio viagem, em prosa poética, e, como ninguém queria nos publicar, nós resolvemos fazer um selo e nos publicar. (risos) Eu também estudo música, estudei música a vida inteira. E queria aprender a pintar. (pausa) É que eu acho isso tudo muito orgânico. Café, teatro, literatura, música... A força, a energia que eu imprimo em cada coisa que eu faço é a mesma. Eu não me dedico mais a isso ou aquilo. Os clientes que vão na Rause saem de lá fascinados porque experimentam uma coisa nova, com a qual eles não estão acostumados. Não é só um cafezinho, é uma experiência. Eu tento proporcionar experiências novas através de tudo que eu faço - mas, para conseguir isso, eu também tenho que me proporcionar coisas novas.

Marina: Por que você diz que o café que nós tomamos no dia-a-dia é ruim?

Otavio: O café não é uma coisa só: ele é todo um processo. Você planta uma muda e espera quatro anos para poder colher a primeira safra. Você colhe o café, que é uma fruta; descasca, e pega a semente. Essa semente, que é verdinha, diferente do que a gente costuma ver, precisa ser seca, torrada e moída. Depois você adiciona a água e vai chegar ao café. A questão é: como é feito tudo isso, cada etapa desse processo? O café industrial é feito do jeito mais simples e mais rápido possível. Você colhe tudo, todas as frutinhas - mesmo se alguma estiver meio podre, a outra meio verde -, faz o processo todo, produz milhões de toneladas, embala e vende por dez reais o quilo. Isso faz o Brasil se gabar de ser o maior produtor mundial de café. Grande merda! O nosso café é tão ruim que a gente produz muito e não consome quase nada. A Noruega tem o maior consumo per capita de café do mundo: a média é de 6 xícaras de café por dia para cada habitante. O Brasil não chega nem perto disso. Tem muitos pontos que precisam ser levados em consideração: o grão; a torra, que precisa valorizar as características do café; o tipo de moagem; o frescor. Café não tem conservantes, coitadinho. Café velho oxida, perde o aroma. É como uma Cola-Cola que você esqueceu aberta na geladeira. Você compra um pacote de café no supermercado e o prazo de validade é de 120 dias, mas isso é só o tempo que você pode tomar aquele café sem morrer. O que não quer dizer que ele continue com um sabor bom. Eu não vendo um quilo de café para um cliente que vai demorar para consumir, por exemplo. Eu vendo 250 gramas e digo para ele voltar na outra semana, para ir para casa com café novo, fresco.

Marina: O que é um café especial?

Otavio: Essa é uma certificação criada nos Estados Unidos na década de 70. Ela separa cafés por níveis de qualidade. Todo ano existem feiras certificadoras, onde especialistas experimentam cafés às cegas. Os cafés que ganham as melhores notas são certificados. Mas você não precisa nem ser um especialista para notar a diferença: eu garanto que, só de cheirar um desses cafés, você já vai perceber que é muito diferente daquele ao qual a gente está acostumado. O problema é que existe um abismo gigantesco entre os cafés especiais e os cafés que a gente compra no supermercado. E não precisava ser assim. A gente pode, com medidas simples, melhorar o padrão de qualidade. O café de dez reais por quilo poderia ser muito, muito melhor - só que a maioria dos industriais não se importa com isso. "Ah, a gente faz desse jeito porque é tradicional, porque a minha família sempre fez assim." Que se foda a sua família, a gente está no século XXI. Se puder fazer diferente para fazer melhor, tem que fazer diferente. Aí eles acham que, pra melhorar, teriam que aumentar o preço do café, e as pessoas não iriam mais comprar. Mas não tem que aumentar o preço para o consumidor, tem que diminuir o lucro. Eu pergunto a eles: será que isso iria alterar tanto assim o seu padrão de vida? Por isso que eu digo que o meu discurso em relação a tudo isso é meio de ONG. (risos)

Marina: É tudo isso que você apresenta nos seus workshops?

Otavio: Sim, mas de um jeito mais aprofundado, detalhado. Mas também não é uma aula. É uma conversa. As pessoas em geral não conhecem café. Quando você conta que o café é uma fruta, vermelha, doce feito uma jabuticaba, as pessoas nem acreditam, porque elas esquecem que o que a gente usa é a semente. Então eu espero o consumidor fazer perguntas, começar o assunto. O interesse tem que partir dele, não de mim. Como eu falei, eu gosto de pessoas. Gosto de estabelecer relações. Mas eu não tô falando de networking, nem me vem com essas coisas. Eu tô falando de relações humanas. Eu não faço marketing, não forço nada. Pode ser que a conversa fique só no café. Pode ser que a gente vire amigo. Pode ser que a gente case. Vai saber?
Itapema: Se você diz que o café que a gente toma no dia-a-dia é ruim, isso quer dizer que você normalmente não toma café em qualquer lugar?
Otávio: Eu tomo qualquer merda quando o foco não é o café. (risos) Se você me oferecer um cafezinho agora, eu vou aceitar, porque o foco aqui é essa nossa conversa, a parte social da coisa. Agora, se o foco for o café, se você me convidar para sair e ir conhecer uma cafeteria, por exemplo, aí sim. Tem que ser o café.


Otavio Linhares é Consultor de Cafés Especiais e Barista. Já conquistou vários títulos dentre eles Campeão Brasileiro de Baristas, foi ranqueado do Campeonato Mundial de Berna-Suíça e Bi-Campeão Sul-Brasileiro.
Até hoje já formou milhares de baristas no Brasil e na Colômbia e trabalha com Consultoria Técnica e Treinamento de Baristas na Rause Café e Vinho.

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